E que os clérigos devotamente rezem o Ofício diante de Deus,
não atendendo tanto à melodia da voz, quanto à consonância do Espírito,
de modo que a voz sintonize com o espírito e o espírito sintonize com Deus,
e assim possam, pela pureza do espírito, agradar a Deus e não,
pela melodia da voz, encantar os ouvidos do povo.
(S. Francisco de Assis, Carta a toda a Ordem, c. 6, nn. 41 - 42, Fontes Franciscanas I, 110-111)
Gonçalo Figueiredo (OFM) in Nota de Apresentação,
ITINERARIUM, Revista Quadrimestral de Cultura Franciscana,
ANO LX / N.º 209, Maio-Agosto 2014, pp. 405-406.
A presença da música na vida do Santo de Assis é uma constante. A sua veia artística está bem patente no inigualável "Cântico das Criaturas", composto pouco tempo antes da sua morte. Desde os tempos trovadorescos em linguajar provençal (1), à composição da letra e melodia para que os frades a cantassem à Senhora Pobre, Santa Clara (2), passando pelo ensaiar com dois paus um "violino", a música é no sentir poético de Francisco, homem dotado de bela voz, como nos conta o biógrafo no ensaio do presépio de Greccio (4), sinal de profunda alegria e contentamento posto ao serviço do louvor de Deus a que ele exorta, não apenas os homens, mas também todos os seres vivos, desde as aves do céu à irmã cigarra (5).
Percebe-se assim como no particular sentir do santo há espaço para a harmonia do canto, quer o improvisado e espontâneo, à maneira dos itinerantes que de terra em terra, feira em feira, cidade em cidade, cantam os feitos dos grandes reis e das belas damas amadas, quer a música institucional das grandes abadias nas horas canónicas.
Na construção de algo novo, que era a fraternidade dos irmãos menores, Francisco recolhe muito da sua particular experiência e maneira de ser e estar, assim como também da vida da Igreja, particularmente dos mestres da liturgia nas grandes abadias beneditinas onde o Ofício solenemente cantado tinha e tem particular importância.
Pela carta a toda a Ordem percebemos uma particular preocupação do santo pobre: não roubar a Deus o louvor que lhe é devido ao ser este atribuído ao intérprete. Que o canto seja para louvar a Deus e não o cantor. Mas adivinhamos também outra não menos importante preocupação: que não se roube tempo ao anúncio veloz da Boa Nova com o necessário tempo de ensaio de cânticos. Ao que se junta uma natural inclinação à espontaneidade, ou uma inconsciente tendência a fugir do instituicional.
Os filhos do Patriarca de Assis não foram alheios a este modo de viver a Alegria do Evangelho e, por isso, de muitos e diversos modos, incorporaram no seu património, espiritual e material, as riquezas de quem louva a Deus com arte e com alma.
Como nas demais disciplinas levanta-se a dificuldade de saber se existe, ou não, o que se possa chamar de uma "Escola Franciscana" e, para o que aqui agora nos importa, identificar claramente os sinais distintivos que permitam falar-se de uma "Escola Franciscana de Música" que vá além do trabalho de Franciscanos, Clarissas e Terceiros, ou dos lugares onde eles habitam, conventos, colégios, mosteiros ou colegiadas. Por muito abrangente que tal possa parecer, parece poder afirmar-se como característica principal de uma "Escola Franciscana de Música", a real e efectiva preocupação do louvor divino, o cantar as glórias do Grande Rei.
NOTAS
(1) Às vezes, acontecia o seguinte: quando as dulcíssimas melodias do espírito mais lhe enterneciam o coração, era em francês que se exprimia206. E era em francês, também, que ele, com esfuziante alegria, cantava o que Deus furtivamente lhe murmurava ao ouvido. Outras vezes – como eu próprio vi com os meus olhos – apanhava do chão um pauzito, apoiava-o no ombro esquerdo e, empuno com a direita uma verga retesada por um fio, balanceava o corpo ao ritmo das arcadas sobre o improvisado instrumento, ao mesmo tempo que ao Senhor cantava em francês. (2 Cel 127 - FF, 112).
(2) Encontrando-se ainda no mesmo convento, o bem-aventurado Francisco, depois de compor os Louvores do Senhor pelas suas criaturas, ditou também um cântico, letra e música, para consolação das Senhoras Pobres do convento de S. Damião. (LP, 45 - FF, 925).
(3) Note-se que no tempo de São Francisco este instrumento musical não existia tal como hoje em dia o reconhecemos. Celano aponta-nos para um antepassado medieval deste instrumento de cordas, a viela. Vide nota 1. A correspondência da viela com o violino, longe de se tornar aqui um erro de identificação ou classificação organológica, é, ao invés, uma interpretação natural franciscana da leitura da fonte, devido à posição semelhante em que se tocam ambos os instrumentos.
(4) Francisco reveste-se com os paramentos diaconais, pois era diácono, e, com voz sonora, canta o santo Evangelho. A sua voz potente e doce, límpida e bem timbrada, convida os presentes às mais altas alegrias. (1Cel, 86 - FF, 76).
(5) Um dia, chamou por ela. E a cigarra, como guiada do alto, veio poisar-lhe na mão. Disse-lhe ele: «Canta, irmã cigarra! Com a tua música estridente louva o Senhor que te criou!» Ela obedeceu e pôs-se a ziziar na mão do Santo. (LM, VIII, 9 - FF, 77).
não atendendo tanto à melodia da voz, quanto à consonância do Espírito,
de modo que a voz sintonize com o espírito e o espírito sintonize com Deus,
e assim possam, pela pureza do espírito, agradar a Deus e não,
pela melodia da voz, encantar os ouvidos do povo.
(S. Francisco de Assis, Carta a toda a Ordem, c. 6, nn. 41 - 42, Fontes Franciscanas I, 110-111)
Gonçalo Figueiredo (OFM) in Nota de Apresentação,
ITINERARIUM, Revista Quadrimestral de Cultura Franciscana,
ANO LX / N.º 209, Maio-Agosto 2014, pp. 405-406.
A presença da música na vida do Santo de Assis é uma constante. A sua veia artística está bem patente no inigualável "Cântico das Criaturas", composto pouco tempo antes da sua morte. Desde os tempos trovadorescos em linguajar provençal (1), à composição da letra e melodia para que os frades a cantassem à Senhora Pobre, Santa Clara (2), passando pelo ensaiar com dois paus um "violino", a música é no sentir poético de Francisco, homem dotado de bela voz, como nos conta o biógrafo no ensaio do presépio de Greccio (4), sinal de profunda alegria e contentamento posto ao serviço do louvor de Deus a que ele exorta, não apenas os homens, mas também todos os seres vivos, desde as aves do céu à irmã cigarra (5).
Percebe-se assim como no particular sentir do santo há espaço para a harmonia do canto, quer o improvisado e espontâneo, à maneira dos itinerantes que de terra em terra, feira em feira, cidade em cidade, cantam os feitos dos grandes reis e das belas damas amadas, quer a música institucional das grandes abadias nas horas canónicas.
Na construção de algo novo, que era a fraternidade dos irmãos menores, Francisco recolhe muito da sua particular experiência e maneira de ser e estar, assim como também da vida da Igreja, particularmente dos mestres da liturgia nas grandes abadias beneditinas onde o Ofício solenemente cantado tinha e tem particular importância.
Pela carta a toda a Ordem percebemos uma particular preocupação do santo pobre: não roubar a Deus o louvor que lhe é devido ao ser este atribuído ao intérprete. Que o canto seja para louvar a Deus e não o cantor. Mas adivinhamos também outra não menos importante preocupação: que não se roube tempo ao anúncio veloz da Boa Nova com o necessário tempo de ensaio de cânticos. Ao que se junta uma natural inclinação à espontaneidade, ou uma inconsciente tendência a fugir do instituicional.
Os filhos do Patriarca de Assis não foram alheios a este modo de viver a Alegria do Evangelho e, por isso, de muitos e diversos modos, incorporaram no seu património, espiritual e material, as riquezas de quem louva a Deus com arte e com alma.
Como nas demais disciplinas levanta-se a dificuldade de saber se existe, ou não, o que se possa chamar de uma "Escola Franciscana" e, para o que aqui agora nos importa, identificar claramente os sinais distintivos que permitam falar-se de uma "Escola Franciscana de Música" que vá além do trabalho de Franciscanos, Clarissas e Terceiros, ou dos lugares onde eles habitam, conventos, colégios, mosteiros ou colegiadas. Por muito abrangente que tal possa parecer, parece poder afirmar-se como característica principal de uma "Escola Franciscana de Música", a real e efectiva preocupação do louvor divino, o cantar as glórias do Grande Rei.
NOTAS
(1) Às vezes, acontecia o seguinte: quando as dulcíssimas melodias do espírito mais lhe enterneciam o coração, era em francês que se exprimia206. E era em francês, também, que ele, com esfuziante alegria, cantava o que Deus furtivamente lhe murmurava ao ouvido. Outras vezes – como eu próprio vi com os meus olhos – apanhava do chão um pauzito, apoiava-o no ombro esquerdo e, empuno com a direita uma verga retesada por um fio, balanceava o corpo ao ritmo das arcadas sobre o improvisado instrumento, ao mesmo tempo que ao Senhor cantava em francês. (2 Cel 127 - FF, 112).
(2) Encontrando-se ainda no mesmo convento, o bem-aventurado Francisco, depois de compor os Louvores do Senhor pelas suas criaturas, ditou também um cântico, letra e música, para consolação das Senhoras Pobres do convento de S. Damião. (LP, 45 - FF, 925).
(3) Note-se que no tempo de São Francisco este instrumento musical não existia tal como hoje em dia o reconhecemos. Celano aponta-nos para um antepassado medieval deste instrumento de cordas, a viela. Vide nota 1. A correspondência da viela com o violino, longe de se tornar aqui um erro de identificação ou classificação organológica, é, ao invés, uma interpretação natural franciscana da leitura da fonte, devido à posição semelhante em que se tocam ambos os instrumentos.
(4) Francisco reveste-se com os paramentos diaconais, pois era diácono, e, com voz sonora, canta o santo Evangelho. A sua voz potente e doce, límpida e bem timbrada, convida os presentes às mais altas alegrias. (1Cel, 86 - FF, 76).
(5) Um dia, chamou por ela. E a cigarra, como guiada do alto, veio poisar-lhe na mão. Disse-lhe ele: «Canta, irmã cigarra! Com a tua música estridente louva o Senhor que te criou!» Ela obedeceu e pôs-se a ziziar na mão do Santo. (LM, VIII, 9 - FF, 77).